
Hoje faço um apelo público ao Presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump. Apelo a que ele, enquanto detentor do cargo mais importante do mundo, cumpra uma das maiores promessas que fez em campanha eleitoral.
Nos dias que correm, e pelo menos nos regimes democráticos, está generalizada a ideia de que os políticos, grosso modo, são mentirosos, e não cumprem com a sua palavra. Para voltar a dar credibilidade à democracia, para combater este divórcio entre cidadãos e representantes, é fundamental que estes últimos, os políticos, estejam especialmente atentos no cumprimento dos compromissos que assumiram em campanha eleitoral.
Isto aplica-se, especialmente, no caso do político mais poderoso do planeta: o presidente dos EUA. E o presidente Donald Trump vai ainda a tempo de honrar a sua palavra numa promessa importantíssima que fez aos 63 milhões de americanos que votaram nele em 2016, aos trinta estados que lhe deram a vitória no sistema eleitoral americano. São sessenta e três milhões de pessoas que estão a confiar que o presidente lhes seja verdadeiro, e é em nome desses 63 milhões que eu lanço aqui o meu apelo.
Mas para explicar que promessa foi essa, voltemos um pouco atrás.
Quem estiver minimamente atento e informado relativamente ao que se tem passado na política portuguesa nos últimos tempos, quem tiver estado atento ao discurso público e à narrativa mediática prevalecente nos anos recentes, poderá ter ficado com a impressão bizarra de que a crise económica e financeira que passámos foi consequência de perigosas progressões nas carreiras dos professores, ou do estilo de vida opulento dos portugueses («acima das nossas possibilidades»), ou do facto de ainda não termos descoberto o nosso Cristiano Ronaldo das finanças, e termos andado, em vez disso, a selecionar jogadores obscuros da segunda divisão para comandar esta pasta fundamental da governação. Ora, independentemente da perspectiva que tenhamos relativamente à origem do nosso problema de dívida pública (spoiler: foi o capitalismo, posto em esteróides por um má arquitectura do euro, mas isso fica para outro texto), este tipo de ilustrações sobre a crise, com tudo o que nelas está implícito, é um disparate pegado. Lembremo-nos onde a crise verdadeiramente começou. A crise começou com um colapso financeiro de Wall Street, em 2007/2008. Não começou com os funcionários públicos, nem com os pensionistas, nem com os CTT públicos, nem com um mercado de trabalho rígido, nem sequer com José Sócrates ou Pedro Passos Coelho. Começou por causa da banca. E quanto a isso ninguém parece estar assim tão preocupado. Andam-nos a atirar areia para os olhos.
Nem sempre foi assim. Noutros tempos, líderes políticos mais sensatos do que aqueles que hoje temos mostravam-se preocupados em resolver problemas reais e garantir que as crises que tinham enfrentado não se voltariam a repetir. Em 1929, como é sabido, houve um crash da bolsa de Nova Iorque, análogo ao de 2007. A história é-nos familiar: seguiram-se anos e anos de crise, recessão, desemprego e austeridade em todo o mundo ocidental. E então, em 1933, o congresso dos Estados Unidos lembrou-se de tomar uma medida fundamental para que colapsos como este não voltassem a acontecer. O presidente Roosevelt tinha tomado posse nesse ano e, ao longo dos seus inéditos quatro mandatos presidenciais, viria a salvar a América da depressão (ou, se preferirmos, a salvar o capitalismo americano da ameaça de uma revolução socialista). A medida em causa, promulgada pelo presidente poucos meses depois de tomar posse, foi proposta por dois congressistas democratas, o Senador Carter Glass e o Representante Henry Steagall. Desde então tem sido conhecida como Lei Glass-Steagall.
Em resumo, a Lei Glass-Steagall impunha a separação entre a banca comercial, onde as pessoas guardam o seu dinheiro e as suas poupanças, e a banca de investimento, sujeita a especulação e alto risco. O princípio básico era o de que os bancos deixariam de poder usar o dinheiro dos depositantes para jogar no casino da especulação financeira. Tratava-se de regular a fonte principal do problema: a banca.
E, de facto, a regulação financeira da administração Roosevelt e do pós-guerra, incluindo esta e outras medidas, mostrou-se um enorme sucesso, com resultados extraordinários. Durante décadas, o capitalismo prosperou naquilo que foi visto como um milagre económico, uma época de ouro.
Mas, como seria de esperar, o sector financeiro contra-atacou o poder regulatório; e foi conseguindo, a pouco e pouco, que o legado dos congressistas Glass e Steagall fosse desmantelado. A interpretação da lei de 1933 foi sendo gradualmente flexibilizada pelos reguladores, e por fim, em 1999, a legislação foi totalmente revogada. Curiosamente, Glass-Steagall sofreu a sua morte às mãos do Presidente Clinton, um democrata.
E, durante vários anos, andou desaparecida em combate. Apesar da crise de 2007-2008, o poder político em todo o mundo parecia, na prática, completamente desinteressado de separar a banca. Para quê regular, porquê resolver o verdadeiro problema? – arranje-se variadíssimos bodes expiatórios, aplique-se austeridade, culpe-se a má gestão orçamental. Vire-se público contra privado, velhos contra jovens, alemães contra gregos, nativos contra imigrantes. Uma medida como esta não podia dar sinal de vida.
E no entanto deu, nas circunstâncias mais inesperadas. Em 2016, na convenção do Partido Republicano para as eleições presidenciais americanas desse ano, em Cleveland – a mesma convenção em que Donald J. Trump foi nomeado candidato a presidente – lá reapareceu a proposta de separação da banca. De facto, o partido Republicano, o partido da desregulação financeira, dos cortes de impostos para milionários, da crise financeira sob a administração Bush, vinha propô-la no seu programa eleitoral, sob a égide de um candidato de extrema-direita. Trump, num golpe de enorme ironia, assumiu como proposta a reinstituição de Glass-Steagall. A ser implementada no caso de uma vitória na corrida à Casa Branca.
Hoje, apelo a que Donald Trump cumpra finalmente a sua promessa. Um compromisso que, ao terceiro ano de mandato, ainda não conseguiu honrar – nem tentou sequer, apesar de uma ou outra declaração esporádica. Mas que ainda vai a tempo de cumprir.
Apelo a que, em vez de desperdiçar recursos num muro inútil com o México, cumpra a sua promessa. Apelo a que, em vez de fazer disparar o défice com mais um corte de impostos para os 1% mais ricos, cumpra a sua promessa. A que, em vez de expandir o maior orçamento militar do mundo, cumpra a sua promessa. A que, em vez de desmantelar o Obamacare, deixando milhões de americanos sem seguro de saúde, cumpra a sua promessa. A que, em vez de ameaçar a Venezuela, cumpra a sua promessa. A que, em vez de sair do Acordo de Paris e destruir o planeta, cumpra a sua promessa. Apelo a que, em vez de bombardear civis no médio oriente, ou de acabar com a neutralidade da net, ou de rasgar o acordo nuclear com o Irão; cumpra a sua promessa. A promessa de reinstituir Glass-Steagall e a separação da banca. Nessa luta, terá todo o meu apoio. E terá feito um gesto para credibilizar a política democrática e servir os 63 milhões que votaram nele em 2016.
Se Make America Great Again, por uma vez, significar great como na era de ouro do capitalismo, em que a regulação financeira garantia que a banca não colapsava, que a classe média prosperava, que as desigualdades diminuíam, os salários subiam e os trabalhadores tinham direitos a sério, então apelo a que, neste ponto, presidente Trump, nos ponhas a todos Great Again.