
No dia 6 de Outubro, os portugueses elegeram, por sufrágio universal, os duzentos e trinta deputados que nos representarão nesta próxima legislatura. Apurados os resultados, e com base no equilíbrio de forças que as eleições revelaram, cabe agora aos líderes dos vários partidos assegurarem uma solução de governo que obtenha maioria no parlamento. É assim o nosso processo político e democrático.
O primeiro ministro, António Costa, estabeleceu imediatamente, na semana após as eleições, contacto com várias forças partidárias na sua área política – a área da esquerda. No rescaldo destas reuniões, não se verificou haver vontade ou necessidade de aprofundar contactos com vista a um acordo escrito, para o horizonte da legislatura. No entanto, o diálogo não ficou cortado. Referindo-se ao caso específico do PCP, por exemplo, António Costa declarou que haveria trabalho conjunto para o Orçamento do Estado. Do mesmo modo, Jerónimo de Sousa já se tem demonstrado disponível para entendimentos pontuais.
Parece apenas lógico e natural que, embora assumindo diferenças, e mesmo se rejeitando compromissos formais de governo, diferentes forças dentro de uma mesma área política mantenham contacto, e possam convergir caso a caso sempre que haja matérias em que estejam próximas e defendam ideias e propostas programáticas semelhantes. E se continuar a ser possível relativamente a instrumentos da governação tão importantes como o Orçamento de Estado, será também possível, obviamente e por maioria de razão, em áreas específicas, como o combate às desigualdades.
Ora, caro leitor, se mo perdoar, ouso dar mais um passo e sugerir que, por uma questão de coerência e genuinidade, e no sentido de rejeitar tribalismos e sectarismos, a mesma lógica se deveria aplicar, não apenas dentro de cada área política (isto é, dentro da esquerda ou da direita), mas também ao conjunto do espectro político democrático. Parece-me, em nome da lealdade para com os eleitores, e do tão enaltecido e celebrado bom espírito de compromisso, que seria descabido que partidos de esquerda e direita se recusassem a trabalhar em conjunto, ou a viabilizar propostas provenientes do lado de lá da “barricada”, apenas por motivos de táctica política ou mentalidade clubista, nas áreas em que apresentam propostas idênticas ou muito semelhantes. Nos casos em que viesse sabotar ou minar a existência factual de maiorias parlamentares a favor de medidas específicas, esse tipo de comportamento seria ainda mais vergonhoso.
Eu, no entanto, enquanto eleitor crédulo, que mantém a esperança na honra e bom nome dos seus representantes, tenho a forte expectativa de que todos os deputados venham a cumprir o seu compromisso com os programas pelos quais foram eleitos. Neste sentido, calculo naturalmente que seja uma questão de tempo até o PSD e o Bloco de Esquerda aprovarem em conjunto legislação para acabar com um problema que ambos denunciam nos respectivos programas: a disparidade de salários absurda e vergonhosa que se pratica dentro de certas empresas em Portugal.
Como demonstrado com enorme clareza num gráfico que o BE apresenta no seu programa eleitoral (secção 3.1.1), os grandes gestores de topo ganham salários que são amplamente desproporcionais ao vencimento dos funcionários das suas empresas; e isto é verdade tanto em comparação com o salário mínimo, como com o salário médio dos trabalhadores da empresa. Os valores da EDP podem ser tomados como cúmulo deste absurdo: um funcionário que receba o salário mínimo teria de trabalhar mais de 260 anos para ganhar o que o gestor da empresa ganha num ano – ou, dito de forma caricata, este trabalhador teria de se esforçar desde a década de 1750 (sim, precisamente, meados do século XVIII) até hoje para ganhar o que o seu gestor fez no ano de 2018.
A isto acresce que, como referido no programa do PSD (página 94), «Portugal é o quarto país da União Europeia com maior desigualdade salarial» e «o vencimento dos gestores de topo aumentou, nos últimos três anos, cerca de 40%», enquanto continua a crescer o número de trabalhadores que ganha apenas o salário mínimo nacional. A este diagnóstico impecável, acrescento que os números da desigualdade de rendimentos em Portugal só não são ainda piores do que aquilo que actualmente já são devido aos mecanismos redistributivos que temos, incluindo o estado social, impostos progressivos, subsídios, o salário mínimo, etc.
Estes mecanismos são ferramentas importantes para reduzir o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, e ajudam a que possamos continuar a ter, apesar de tudo, a coesão social que nos permite olhar para um concidadão como um semelhante, alguém com quem podemos empatizar e partilhar uma experiência comum. No entanto, têm também desvantagens. A redistribuição, per se, é insuficiente e tem os seus limites.
Os Limites da Redistribuição
Não é muito difícil perceber porquê. Do ponto de vista de quem recebe, à partida, um rendimento elevado, ter de pagar uma percentagem grande desse rendimento em impostos, no escalão mais alto do IRS, para satisfazer as necessidades do resto da população, assemelha-se a um roubo, praticado pela maléfica mão do estado. “Afinal de contas”, pensarão estes cidadãos para si próprios, “não tenho também eu direito a guardar o dinheiro que ganhei com o meu trabalho?”.
Bem, a lógica de redistribuição é mais do que legítima quando percebemos que não há nada de justo na forma como o mercado distribui espontaneamente a riqueza. Deste ponto de vista, redistribuir é apenas uma forma de corrigir o problema original. Voltar a distribuir o que está injustamente distribuído – daí vem, obviamente, o prefixo “re-” na palavra.
No entanto, também parece lógico que realizar um segundo processo de distribuição, para corrigir o primeiro, não é, para usar palavreado de que os economistas tanto gostam, a ideia mais “eficiente”. Em abstracto, a solução muito mais óbvia e socialmente pacificadora seria a de fazer, logo à partida, uma distribuição mais justa da riqueza.
Estou longe de chorar lágrimas amargas de compaixão pela tristeza da elite económica portuguesa. No entanto, podemos admitir que assentar um projecto de redução de desigualdades apenas numa estratégia de redistribuir a riqueza – de retirar a uns para dar a todos – colide de certo modo com o objectivo de coesão social que devemos almejar. As consequências são visíveis se olharmos atentamente para a história e para o mundo actual.
Na verdade, uma forte estratégia de redistribuição, como implementada nas principais economias do mundo ocidental, durante e após a Segunda Guerra Mundial, é insustentável no longo prazo. Isto sucede porque, inevitavelmente, a desigualdade na distribuição inicial da riqueza cria incentivos para que uma elite económica, mesmo que muito enfraquecida, invista todos os seus esforços em desmantelar e reverter precisamente os impostos e regulações que lhes limitam o poder.
Por outras palavras, por muito que um sistema deste tipo consiga reduzir o fosso entre os mais pobres e os mais ricos, o pecado original da injustiça económica continua a implicar que a parte da população com maior poder político se acha no direito de não lhes ver retirada a posteriori a riqueza que adquiriram. De facto, não foram precisas muitas décadas para que, como consequência de um contra-ataque corporativo, o modelo redistributivo, social-democrata, keynesiano, do pós-guerra fosse desmantelado, numa tendência que tem sido praticamente linear até aos dias de hoje e que continua a revelar-se e aprofundar-se em ideias como a necessidade inevitável de austeridade e da destruição da contratação colectiva, o aparecimento de partidos como a Iniciativa Liberal, ou as propostas radicais de cortes de impostos de Assunção Cristas (uma espécie de reagonomics à portuguesa), para citar alguns exemplos próximos de nós. Além disso, é importante tomarmos consciência de que uma estratégia sólida de redistribuição só foi possível depois da maior crise económica e financeira de que há memória (Crash de 1929) e da guerra mais trágica e violenta de que há memória (Segunda Guerra Mundial), e, mesmo assim, só aplicada por reacção à ameaça da URSS. Enquanto antecedente histórico, este cocktail de factores não parece muito promissor.
Não devemos desprezar nem esquecer a importância das conquistas que o modelo social-democrata do pós-guerra trouxe às democracias ocidentais. Nem devemos prescindir das ferramentas que foram usadas nesse período para reduzir as desigualdades económicas. No entanto, não podemos achar que são suficientes. Não podemos, enquanto sociedade, querer reproduzir um modelo que só foi possível aplicar como resposta a eventos profundamente traumáticos e destrutivos, muito menos quando verificamos que, mesmo nessas circunstâncias, foi rapidamente desmantelado.
Mas, então, que outra estratégia se poderia utilizar? Como se poderia garantir que a riqueza, em vez de meramente redistribuída, fosse também melhor distribuída em primeiro lugar?… como garantir uma melhor “pre-distribuição”?
Os Caminhos para uma Pre-distribuição Mais Justa
Uma abordagem realmente radical seria mudar completamente o processo. Em vez de nos focarmos na forma como a riqueza é distribuída, poderíamos atacar os problemas de fundo: quem faz a distribuição, e de acordo com que princípios. Num local de trabalho democrático, em que todas as decisões, incluindo aquelas relativas a vencimentos, são tomadas pelos trabalhadores ou por representantes seus eleitos directamente, a distribuição da riqueza segue, naturalmente, princípios completamente diferentes daqueles seguidos numa grande empresa de organização tradicional como a Jerónimo Martins ou os CTT.
Outra possível abordagem, que não é de todo inédita, seria a de introduzir elementos democráticos nestas mesmas grandes empresas. Poder-se-ia, por legislação, obriga-las a incluir nos seus órgãos de direção representantes dos trabalhadores, eleitos pelos mesmos. Este modelo foi historicamente implementado na Alemanha, e não parece ter tido efeitos particularmente destrutivos – afinal de contas, estamos a falar da maior economia da Europa. E a este ponto, parece-me importante assinalar que, ainda este ano, a senadora Elizabeth Warren, de momento a principal candidata dos democratas à presidência dos Estados Unidos, propôs esta medida como parte de um pacote de legislação que baptizou de «Accountable Capitalism Act».
A abordagem mais directa, contudo, e para regressar à nossa discussão sobre convergência entre PSD e Bloco de Esquerda, seria regular directamente o tipo de valores que pode ser pago dentro de cada empresa. Se se criar legislação nesse sentido, o Estado pode impor um limite máximo de desigualdade à distribuição dos vencimentos, estabelecendo uma diferença máxima entre os salários de topo, atribuídos aos gestores, e o salário mais baixo, ou, em alternativa, o salário médio dos funcionários da empresa. E, para o fazer, há várias ferramentas ao nosso dispor.
Até certo ponto, o Estado já impõe, pura e simplesmente, um limite ao que pode ser pago pelas empresas aos seus trabalhadores. Este limite, claro está, é conhecido como salário mínimo nacional. Se atendermos a tal precedente, a possibilidade de estabelecer outras restrições, impostas por decreto, não parece assim tão chocante. Mas mesmo que a via de imposição simples e directa seja descartada, continuamos a ter, ao nosso dispor, outras estratégias. Uma delas é através da fiscalidade. As empresas que ultrapassassem determinado limite na diferença entre os seus salários poderiam ser punidas com uma sobretaxa de IRC, até eventualmente divisível em vários escalões, de acordo com a gravidade da disparidade nos vencimentos. Outra estratégia seria vedar às empresas acima de determinados níveis de desigualdade uma relação com o Estado a nível de apoios, subsídios, benefícios fiscais e concursos públicos.
Em todo o caso, estas duas últimas estratégias não são incompatíveis ou mutuamente exclusivas. Nem estão assim tão distantes uma da outra ao ponto de tornar especialmente difícil algum tipo de compromisso. E é por isso que conto com PSD e Bloco para legislarem em conjunto nesta área. Passo a explicar.
Uma Questão de Convergência
Por seu lado, o PSD avançou nesta campanha eleitoral com uma proposta correspondente à estratégia fiscal: punir com um agravamento de impostos as empresas que ultrapassem determinado rácio de disparidade salarial. Não me refiro apenas ao documento de programa eleitoral apresentado, no qual se propõe «um rácio que defina um leque salarial… bem como penalizar fiscalmente as empresas que não cumpram essa orientação», mas também a várias declarações de Rui Rio, inclusive num debate televisivo da pré-campanha contra Jerónimo de Sousa, nas quais reiterou a sua ligação pessoal à introdução desta medida na agenda dos sociais democratas.
Já o Bloco de Esquerda tem optado antes pela estratégia de condicionar benefícios fiscais e o acesso a concursos públicos. No seu programa eleitoral, o BE propõe que empresas que ultrapassem um leque salarial estabelecido sejam «excluídas de qualquer apoio público e benefício fiscal, bem como excluídas da possibilidade de participar em arrematações e concursos públicos». Além disso, o partido já apresentou na Assembleia da República, por mais do que uma vez, projectos de lei neste sentido.
Infelizmente, o projecto de lei que o BE apresentou em 2018 foi chumbado com os votos contra do PSD, do CDS-PP e, curiosamente, do PS, que se opôs com base no argumento de que o debate sobre mecanismos de combate à desigualdade salarial deveria ocorrer primeiro em âmbito da Concertação Social.
Tenho de conceder que os deputados do Partido Social Democrata, eleitos em 2015 sob a liderança de Pedro Passos Coelho e o programa eleitoral da PàF, não tinham mandato democrático para legislar neste sentido nesta matéria. Certamente, é esse o factor que justifica o seu sentido de voto na passada legislatura.
No entanto, como diz o ditado, “legislatura nova, vida nova”. O mandato neste momento é claro e inequívoco. Os sociais democratas manifestaram-se claramente a favor de mecanismos para restringir a disparidade salarial dentro das empresas, e portanto é expectável que avancem com projectos de lei nesse sentido. Mesmo que o PS continue a insistir em argumentos pouco genuínos para adiar qualquer medida, poderá haver no parlamento deputados suficientes para fazer aprovar legislação.
Façamos as contas. A soma dos votos do PSD e do BE é insuficiente, mas temos ainda de contar com o apoio do PCP e do PEV, que em 2018 votaram a favor do projecto de lei do Bloco; e do Livre, que também apoia no seu programa a «instituição de um rácio máximo de desigualdade salarial em cada empresa, organização ou ramo de atividade». E mesmo num cenário em que os pequenos partidos de direita como o Chega, a Iniciativa Liberal e o CDS-PP se unam ao PS para votar contra, bastaria que, à semelhança de 2018, se repetisse a abstenção do PAN e de um ou dois deputados do PS para termos uma maioria. Mesmo que, por algum motivo, as contas não batessem certo, seria por uma unha negra.
A Coligação Positiva
Neste momento, seria mais do que legítimo que o leitor parasse para perguntar: será todo este cenário muito mais um truque retórico para marcar posição do que uma possibilidade real no nosso panorama politico-partidário? Certamente. No entanto, é importante assinalarmos que cresce em todo o espectro político a vontade de enfrentar uma disparidade salarial excessiva praticada nas grandes empresas, e que aumenta a força das propostas específicas para resolver essa crise. Não se pode sequer dizer, a este ponto, que seja uma ideia de esquerda (ou de direita…). É uma ideia transversal aos dois campos políticos, que quase conta com apoio maioritário no parlamento.
No passado, sempre que o PSD e os partidos mais à esquerda se uniram para aprovar algo a que um governo PS se opunha, a configuração de votos resultante foi chamada “uma coligação negativa”. Percebe-se a origem do nome. A natureza da combinação entre esquerda e direita resultava frequentemente, não de um propósito comum construtivo, mas de uma oposição, normalmente por motivos diferentes ou até opostos, à posição do PS.
No entanto, um cenário em que PSD e Bloco de Esquerda fossem capazes de se entender e somar esforços para limitar a disparidade de salários, e diminuir as desigualdades em Portugal, fosse através da fiscalidade, fosse pelo condicionamento da relação do Estado com as empresas, ou qualquer outra via, não teria nada de incoerente. Uma “coligação” deste tipo não teria nada para merecer o epíteto de “negativa”. Pelo contrário, seria um esforço meritório de convergência democrática, uma união de forças para enfrentar um dos maiores problemas do nosso tempo. E prevenir o aparecimento de demagogos.
Cá ficamos, portanto, à espera dessa coligação positiva.