Vírus Chinês? Crise Americana!

Eduardo Proença

“Chinese virus” – o vírus chinês! Para aqueles que sabem que o conceito de nacionalidade é uma invenção humana, e que não se pode aplicar a seres microscópicos, a expressão é bizarra. Naturalmente, isto não impede que o presidente americano Donald Trump utilize permanentemente este epíteto para se referir ao Novo Coronavírus (SARS-CoV-2), nos seus discursos.

Por vezes, Trump tem-lhe chamado também “Kung flu” ou “China virus”. De onde vem esta ideia, de que o bicho que causa a pandemia de COVID-19 é chinês? Claro está, do facto de a doença ter surgido, inicialmente, na região de Wuhan, na China. Neste sentido, a designação ilustraria uma associação geográfica com a origem desta crise de saúde. Fica portanto subjacente a ideia de que o país onde começa uma crise deve ficar associado, por nome, a essa mesma crise. Mais do que isso, que deve assumir responsabilidade por ela. E de facto, não devemos deixar de associar a presente pandemia ao governo chinês, que tem culpas no cartório pela forma como, numa fase inicial, foi incapaz de conter a propagação da doença, enquanto tentava esconder do mundo a verdadeira dimensão do problema. É justo.

Aquilo que não consigo decifrar, mesmo recorrendo a toda a minha capacidade de raciocínio, é o porquê de esta lógica de nomenclatura se restringir, unicamente, a esta crise, e à China em específico. Se “chamar os bois pelos nomes” fôr um princípio a aplicar de forma isenta – e não um pretexto para Trump fazer da China bode expiatório – porque não dar-lhe um uso mais abrangente? A administração americana tem tido uma resposta desastrosa e incompetente a esta pandemia, e os Estados Unidos são o país com maior número de casos e maior número de mortos (they’re number one!), mas vamos assumir que a ideia aqui não é trazer à baila a China para pôr essas responsabilidades debaixo do tapete… Nesse caso, exijo que a aplicação do princípio “quem esteve na origem da crise, dá nome à crise” seja indiscriminada.

Ora, assim sendo; recordam-se daquela crise financeira que começou na bolsa de Nova Iorque, em 2008? Aquela que começou em Wall Street, por causa da fraude que havia na banca americana, mas depois se espalhou por todo o mundo? A mesma por causa da qual tivemos anos de recessão, austeridade, desemprego? Bem… A partir de hoje, devemos todos começar a chamar à crise financeira de 2008: “crise americana”.

Não será uma comparação injusta? Certamente. Enquanto que o “vírus chinês” tem causas naturais – infecção por um micróbio, um ser que não tem nacionalidade, – a “crise americana” foi causada pelo homem – fraude nos bancos americanos, a que fecharam os olhos os reguladores americanos, porque os legisladores americanos desregularam a banca.

Está na altura de apurarmos responsabilidades pelas coisas. Não só por umas, que dão jeito, mas por todas. Isto significa que devemos ser xenófobos para com os americanos? Claro que não. E não façamos dos Estados Unidos bode expiatório para a nossa própria desregulação bancária. Mas talvez signifique que temos de repensar a nossa política externa, no sentido de a tornar um pouco mais racional. Porque não haverão os Estados Unidos de sofrer represálias por terem causado uma crise económica global? Porque não haverão de ser sancionados pela sua ineficácia em regular a banca? E porque é que não há nenhum desincentivo a que repitam os erros do passado – erros que puseram portugueses no desemprego, que aumentaram os nossos níveis de depressão, que levaram crianças portuguesas à pobreza, que nos forçaram a cortes nos salários, nas pensões, nas escolas, nos transportes públicos… nos hospitais, de que agora tanto precisamos para responder a uma pandemia?

(E já que estamos com a mão na massa, poderíamos também pensar em sancionar os Estados Unidos por terem invadido ilegalmente o Iraque, por manterem uma prisão extrajudicial em Guantánamo, onde são torturadas pessoas, por matarem, com drones, civis inocentes no Médio Oriente, ou, enfim, por serem um estado terrorista).

A resposta, claro está, é que a nossa política externa – portuguesa e europeia – não faz qualquer sentido. Sofremos as consequências que nos são impostas, o choque económico causado pela desregulação financeira americana, sem nunca pensarmos que, pelo menos enquanto União Europeia, nos deveríamos defender, utilizando a pressão diplomática para forçar o governo dos Estados Unidos a regular a sua banca.

Até isso acontecer, vamos continuar a inventar bodes expiatórios em Portugal – os funcionários públicos, os professores, os pensionistas, a chanceler Merkel, o Sócrates, o Passos Coelho, o Costa, etc – e a culpar-nos uns aos outros numa sociedade cada vez mais dividida. Enquanto não lutarmos por consertar o problema, continuaremos a ser uns bananas – como diria o próprio Trump, “losers”.

Post Scriptum: A propósito, qual seria, antes de mais, o primeiro passo para resolver o problema? Aquele que está ao nosso alcance imediato: regular os bancos portugueses, separando a banca comercial da banca de investimento.

Eduardo Proença

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